Luís Vaz de Camões - Sôbolos rios que vão

Sanderlei 2015-07-22

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Luís Vaz de Camões - Sobolos rios que vao


Sôbolos rios que vão
Por Babilônia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião
E quanto nela passei.

Ali, o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E, tudo bem comparado,
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Ali, lembranças contentes
Na alma se representaram;
E minhas cousas ausentes
Se fizeram tão presentes
Como se nunca passaram.

Ali, depois de acordado,
Co rosto banhado em água,
Deste sonho imaginado,
Vi que todo o bem passado
Não é gosto, mas é mágoa.

E vi que todos os danos
Se causavam das mudanças
e as mudanças dos anos;
Onde vi quantos enganos
Faz o tempo às esperanças.

Ali vi o maior bem
Quão pouco espaço que dura;
O mal que depressa vem,
E quão triste estado tem
Quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais vale,
Que então se entende milhor,
Quando mais perdido for;
Vi ao bem suceder mal
E, ao mal, muito pior.

E vi com muito trabalho
Comprar arrependimento;
Vi nenhum contentamento,
E vejo-me a mim, que espalho
Tristes palavras ao vento.

Bem são rios estas águas
Com que banho este papel;
Bem parece ser cruel
Variedade de mágoas
E confusão de Babel.

Como homem que, por exemplo,
Dos transes em que se achou,
Despois que a guerra deixou,
Pelas paredes do templo
Suas armas pendurou:

Assim, depois que assentei
Que tudo o tempo gastava,
Da tristeza que tomei,
Nos salgueiros pendurei
Os órgãos com que cantava.

Aquele instrumento ledo
Deixei da vida passada,
Dizendo: — Música amada,
Deixo-vos neste arvoredo,
À memória consagrada.

Frauta minha que, tangendo,
Os montes fazíeis vir
Pra onde estáveis correndo,
E as águas, que iam descendo,
Tornavam logo a subir,

Jamais vos não ouvirão
Os tigres, que se amansavam;
E as ovelhas que pastavam,
Das ervas se fartarão
Que por vos ouvir deixavam.

Já não fareis docemente
Em rosa tornar abrolhos
Na ribeira florescente;
Nem poreis freio à corrente,
E mais se for dos meus olhos.

Não movereis a espessura,
Nem podereis já trazer
Atrás de vós a fonte pura,
Pois não pudestes mover
Desconcertos da ventura.

Ficareis oferecida
À Fama, que sempre vela,
Frauta de mim tão querida;
Porque, mudando-se a vida,
Se mudam os gostos dela.

Acha a tenra mocidade
Prazeres acomodados,
E logo a maior idade
Já sente por pouquidade
Aqueles gostos passados.

Um gosto que hoje se alcança,
Amanhã já o não vejo:
Assim nos traz a mudança
De esperança em esperança
E de desejo em desejo.

Mas, em vida tão escassa,
Que esperança será forte?
Fraqueza de humana sorte,
Que quanto da vida passa
Está recitando a morte!

Mas deixar nesta espessura
O canto da mocidade!
Não cuide a gente futura
Que será obra da idade
O que é força da ventura.

Que idade, tempo, o espanto
De ver quão ligeiro passe,
Nunca em mim puderam tanto,
Que, posto que deixe o canto,
A causa dele deixasse.

Mas em tristezas e nojos,
Em gosto e contentamento,
Por sol, por neve, por vento,
Tendré presente á los ojos
Por quien muero tan contento.


Órgãos e frauta deixava,
Despojo meu tão querido,
No salgueiro que ali estava,
Que pera troféu ficava
De quem me tinha vencido.

Mas lembranças da afeição
Que ali cativo me tinha,
Me perguntaram então:
Que era da música minha
Que eu cantava em Sião?
Que foi daquele cantar
Das gentes tão celebrado?
Porque o deixava de usar?
Pois sempre ajuda a passar
Qualquer trabalho passado.

Canta o caminhante ledo
No caminho trabalhoso,
Por entre o espesso arvoredo;
E de noite o temeroso,
Cantando, refreia o medo.

Canta o preso docemente,
Os duros grilhões tocando;
Canta o segador contente,
E o trabalhador, cantando,
O trabalho menos sente.

Eu, que estas cousas senti
Na alma, de mágoas tão cheia,
Como dirá, respondi,
Quem alheio está de si
Doce canto em terra alheia?

Como poderá cantar
Quem em choro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
Canta por menos cansar,
Eu só descansos enjeito.

Que não parece razão
Nem parece cousa idônea,
Por abrandar a paixão,
Que cantasse em Babilônia
As cantigas de Sião.


Que, quando a muita graveza
De saudade quebrante
Esta vital fortaleza,
Antes moura de tristeza
Que, por abrandá-la, cante.

Que, se o fino pensamento
Só na tristeza consiste,
Não tenho medo ao tormento:
Que morrer de puro triste,
Que maior contentamento?

Nem na frauta cantarei
O que passo e passei já,
Nem menos o escreverei;
Porque a pena cansará
E eu não descansarei.

Que, se a vida tão pequena
Se acrescenta em terra estranha,
E se Amor assim o ordena,
Razão é que canse a pena
De escrever pena tamanha.

Porém se, pera assentar
O que sente o coração,
A pena já me cansar,
Não canse pera voar
A memória em Sião.

Terra bem-aventurada,
Se, por algum movimento,
Da alma me fores mudada, .......

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